segunda-feira, 26 de abril de 2010

2 Outonos



Ele

Já começa a beijar o meu pescoço
com sua boca meio gelada meio doce,
já começa a abrir-me seus braços
como se meu namorado fosse,
já começa a beijar a minha mão,
a morder-me devagar os dedos,
já começa a afugentar-me os medos
e dar cetim de pijama aos meus segredos.
Todo ano é assim:
vem ele com seus cajás, suas oferendas, suas quaresmeiras,
vem ele disposto a quebrar meus galhos
e a varrer minhas folhas secas.
Já começa a soprar minha nuca
com sua temperatura de macho,
já começa a acender meu facho
e dar frescor às minhas clareiras.
Já vem ele chegando com sua luz sem fronteiras,
seu discurso sedutor de renovação,
suas palavras coloridas,
e eu estou na sua mão.

Todo ano é assim:
mancomunado com o vento, seu moleque de recados,
esse meu amante sedento alvoroça-me os cabelos,
levanta-me a saia, beija meus pés,
lábios frios e língua quente,
calça minhas meias delicadamente
e muda a seu gosto a moda de minhas gavetas!

É ele agora o dono de meus cadernos, meu verso, minha tela,
meu jogo e minhas varetas.
Parece Deus, posto que está no céu, na terra,
nas inúmeras paisagens,
na nitidez dos dias, no arcabouço da poesia,
dentro e fora dos meus vestidos,
na minha cama, nos meus sentidos.

Todo ano é assim:
já começa a me amar esse atrevido,
meu charmoso cavalheiro, o belo Outono,
meu preferido.


No escuro, o contorno
do corpo, na mão a pele.
Leve-me folha amarela
no vento, na trilha dele.

Dele faça-se berço e
da mortalha humus,
subterraneamente ele,
estrume e criação.

Dela, sopre-me arrepios
para partir-se o fio tênue
da carcaça livre
de desafios e noites insones.

Não há paz, só sementes e ditos
enverdecendo no leito derramado
onde esparramo primavera.
Não há como obstruir infernos,

crepitam lentos o lenho e a perdição
onde tento te encontrar.
E te encontro na terra farta
de enchentes, debaixo das unhas

gastas de te tatear, lisa e perfumada
guardada porosa para que eu entre no
tempo.
Te encontro na falta, no recolhimento
de pios e brotos e de liras e de tempos

passados sempre pontuais nos teus segundos,
nos teus terceiros e nos punhados
de intenções.
Resta-me esperar-te cumprir-te
no cio que te desenrola, na mesma história
te acompanho, desde sempre e ainda.


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