segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

"memória"

"As coisas tangíveis
tornam-se insensíveis
à palma da mão.
Mas as coisas findas,
muito mais que lindas,
essas ficarão."

Outro jantar

O homem permanecia estático frente ao prato ainda fumegante. Passou o olhar pelo ambiente e depois, num movimento peculiar girou o pescoço, virou os olhos à direita, à esquerda e pela superfície dos rostos. Como se um pássaro fosse – isso, um pássaro – com as penas amassadas e ralas, um pássaro, virando o pescoço, examinando o terreno, perscrutando ora uma folha, ora um grão, ora uma sombra, de onde, logo abaixo pudesse adivinhar um vermezinho. O homem alçou o olhar e o pousou, como se tivesse encontrado uma ocupação por fim. Sua pequena cabeça saltitante se deteve, em guarda, na minha direção e os olhinhos ativos me prenderam com interesse. Olhavam para a minha cara, para minhas mãos, volteavam pela mesa passeando, atentando para o rumor do salão e retornavam ao ponto de partida. Deixei que fizesse sua investigação, ignorando o jovem pássaro recém saído do ninho. Me ative ao garfo, que com entusiasmo mirei na tenra carne esperando no prato E depois para a boca, ausente de alimento. Língua, dentes, prontos para lamber, para sugar, para esmigalhar, triturar; papilas e glândulas a postos, enternecidas com as possibilidades de trabalho e prazer. No entanto, apertei os lábios e cerrei os olhos, num reflexo condicionado de dor. Dor cortante que tentava ignorar, que por segundos puncionou com sua lanceta a afta aberta na gengiva. Lágrimas. Minha mulher encolheu-se, sem graça, me consolou, complacente, murmurando pesares pela minha pequena aflição ardendo sob o sal do bife. A reação de dor mais tardia enviou uma frouxidão para o braço que fez abrir a mão que largou o garfo e o garfo no chão.
Sequer falei com o garçom, velho conhecido, onipresente atento dos gestos corriqueiros, das solicitações familiares; surpreendido, confundiu o vinho de costume, trocando o tinto pelo branco.
Todas as bocadas que enviava, agora continham um esforço enorme: o de evitar a dor. Fechava e abria os olhos tentando obstruir o caminho da carne viva. Uma fome maior, sacrificada pelos dias de caldo ralo, me empurravam para o desafio de mastigar o bife suculento. Cheguei a arfar, respirei com dificuldade, porejei, sempre sob o olhar torturante do passarinho. Sim, porque agora se configurava uma afronta. Um homem que olha para outro homem na sua dor, pode humilhá-lo também. Conhece a sua fraqueza, avalia as suas lágrimas, tira conclusões a esmo.
Mais uma vez pressionei o guardanapo sobre os olhos, como se apertasse um dispositivo maior para estancar o desconforto de uma refeição que não mata a fome, que não se faz generosa, nem em sabor, nem em quentura.
Agora mastigava devagar, rolando os bocados para um só lado, atolando a salada de azeite para que tudo escorresse com a generosidade untuosa de aliviar o tormento.
E o homenzinho a olhar, fingindo não olhar.
O que fizeste na vida que te deu o direito de encarar a minha dor? È só uma dor de uma pequena fístula que parece assumir a dor maior que é só minha. Só minha, ouviste? Percebes que não quero reparti-la, mesmo que exposta? Não tolero teu reproche, nem tua comiseração, nem a tua consideração, se assim o queres. Eu não quero repartir a dor da minúscula ferida. Posso repartir meu bife, meu vinho, o garçom solícito, a compaixão compulsiva desta companheira. Minha dor, não.
Come. Termina o teu jantar. Não está bom? Sentes náuseas. Ocupa-te dela. Engole junto com a tua pretensão de enxergar além deste muxoxo existencial.
Sabes o que sinto? Pena de ti, pequeno inapetente.
O vinho botava fogo em meus lábios e em meu ânimo.
Que animal cuida de outro enquanto come? Um outro que cobiça a carniça a ser deixada? Esta era a ambição? Nutrir-se do pequeno evento da minha dor? Imaginar vida e morte nesta pequena falência? Outorgar aos meus gestos involuntários de defesa, teorias de hecatombe moral?
Bebo. De olhos fechados isolo a dor. De olhos bem fechados encontro uma penumbra reconfortante onde posso escolher o creme doce e gelado que encerrará esta sujeição.
Hein? Ainda estás aí, homenzinho pálido? Graveto, matéria flácida, caído, sabe-se lá, de que galho morto. Broto que não vingou.
Mesmo com pesar posso ver no espelho do vestíbulo, a inteireza da minha dor.
E, tu?
Empurras o prato para longe.

penso noite e dia em te tocar

penso noite dia em te tocar,
medito sobre a hora certa...
será que chegará?

virá logo como abril?
ou antes, com a bruma da vigília...

penso noite, como seria,
penso dia, chegaria?

madrugada leve, a lua brinca,
quero te tocar, como quem toca
a água e desenha um bicho,
um desejo, qualquer grão,

circulo a imaginação procurando
a hora de te tocar

será melodia, será meio-dia?
quero te tocar, música fazer!
metade teu violão,
metade meu coração.

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

Hoje no mar


Hoje foi a nossa despedida do mar. Como era de costume, na véspera, na última noite do veraneio, jantávamos no restaurante da plataforma de pesca que existe na nossa praia. Pela manhã passeamos por lá com as crianças, que corriam à frente para olhar as latas de iscas dos pescadores, contar os peixes nos baldes e perguntar sobre o maior peixe do mundo. Passada a curiosidade, permaneciam com o olhar pendurado no mar, enquanto segurávamos suas mãos dentro das nossas. Sentados na beirada dos sarrafos, deixávamos nossas pernas balançando no vaivém das ondas. Então Lucinha pedia - Conta a história do tio Caco ? ... De novo Lu... ? Bem, na semana passada, o tio Caco voltava do restaurante desta mesma plataforma, era seu aniversário; O padrinho lhe dera de presente uma notinha de cem dólares. Colocou a nota dentro da carteira de cigarros, no bolso da camisa de mangas curtas que usava desabotoada. Num dado momento acendeu um cigarro... Era o último... Jogou a carteira no vazio...No mar! Vejam só! As crianças riam pela milésima vez e gritavam para as ondas, como gaivotas sobrevoando no azul. Olhava para aquele espaço ali, onde o tio Caco jogara a sua pequena fortuna e onde os surfistas passam ao largo; Via um terreno movediço engolindo toda a luz. Me arrepiava ao perceber os redemoinhos e sentir a massa d´água batendo contra as estacas fincadas no chão arenoso. Estas sensações eram tão fortes como uma sombra soprando as minhas lembranças; O vento me arrastava para uma região inabitada e sem nome, até que ouvia me chamarem no meio dos silvos do “nordestão” e voltava para o dia quente e luminoso, para o final da manhã, que seria coroada com os pastéis de queijo e camarão na barraca da Chica. Depois dos pastéis, voltamos para casa, e dormíamos debaixo de um ventilador de teto, que rangia o tempo inteiro saturado de maresia. Acordamos no meio da tarde sem visitas. O dia claro havia se escondido atrás da serra. Agora só se via a manta cinza e pesada que vinha da montanha. Chuva na certa. Os filhos já tagarelavam com os amigos de veraneio do condomínio, fazendo os acertos para o próximo ano. Anoitecendo e nenhuma estrela no céu sujo. No caminho de ida para a plataforma onde jantaríamos, sentimos que o tempo parava. Não pela vontade de ficarmos junto ao mar para sempre, mas pelo peso do ar, pela chuva, algum barulho longe roncando temporal. Sentamos à mesa, pai, mãe e filhos de olhos postos no mar atrá das vidraças e nos primeiros relâmpagos que iluminaram a noite. Os raios apareceram em série levando a luz elétrica, a calmaria aparente e todos os bons sentimentos que temos em volta da mesa com os nosso afetos. Nem respirávamos. Via a luz fluorescente que emanava dos olhos dos peixes nos pratos; Sentia o peso do vento e da água puxando, empurrando, batendo na estrutura plantada no fundo do espaço movediço, sem luz, o nada que me assombrava. Ouvia... um gemido? Na pele um ar gelado, na boca um meio sorriso, meio exorcisando o espanto de estar nesse meio, nesse medo. Engolimos aos poucos, engolia um jantar com gosto de susto, no ritmo da tempestade que ia desacelerando.

Hoje, quando a luz se fez, caminhamos na beira d’água, pulando sobre plantas, pedaços de troncos, destroços de pequenos naufrágios. As crianças, Lu e Gabi, excitadíssimas com a ultima olhada no mar, jogavam um pouco de água para cima respingando minúsculos sóis no ar. O oceano liso e calmo era um espelho depois do temporal. Sempre correndo à nossa frente pararam repentinamente mudos. Na areia um corpo escuro, inchado, a imensa mão deformada, cerrada, como se agarrasse a derradeira salvação: Uma carteira de cigarros, na pontinha aparecendo verde desbotada uma nota de dinheiro. Nos enormes olhos abertos, a cor do céu da manhã.

Verborragia

Um escritor precisa mesmo estar de sangue doce, para não se esvair, totalmente, no processo sangrento da criação. Aliás, é um verdadeiro hara-kiri com a pena, enquanto, ensangüentado, o papel pulsa com o sangue novo.
Respirar fundo. Tchum! Uma fisgada mental!
Foi puncionada a veia da inspiração.
Ser ou não ser sanguinário? Eis, a grande doação!
Uns dizem, que uma revolução só se faz com sangue total; outros, de sangue azul, com plasma.
Enquanto verte a discussão, os de sangue quente se puncionam mutuamente, empapando a razão.
A maioria gela o sangue nas veias, até para evitar mais derramamento de sangue contaminado no papel.
Mas, se o sangue, sobe mesmo à cabeça...aí sim, só a sangria é terapêutica.
O sangue, não querendo se dar por vencido, porém altruísta, anônimo e involuntário, se esvai para a academia anêmica de glóbulos.
Anti-corpos irregulares, substâncias pirogênicas, citomegalovírus, uni-vos!
O final está próximo.
De transfusão em transfusão, nada se cria, tudo se clona...
Se não for compatível, é versão hemolisada, matéria rompida, veia perdida.
Talvez a admiração consangüínea, o pacto de sangue e o bife de fígado, façam o estilo vencer.
Mesmo ABOs tipados, olhares cruzados, sangrias coniventes e sorologias simpáticas, de nada adiantem.
A sobrecarga circulatória foi produzida, e a hemodinâmica, em franco desequilibrio, fez o verbo estancar.
Exangue a pena se entrega.
Nem papa de hemáceas, nem sangue fresco lhe basta.
Só restam coágulos, em vagaroso ritmo, à Transilvânia.

Hilda disse:

Do escritor,



"Poupem-no o desperdício de explicar o ato de brincar"


a tormenta
alimenta
o náufrago

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Lamartine disse:


"Rancheira é uma rã que cheira a noite inteira"

A vida é trompe-l'oeil




A vida é a da sorte e a do azar.
A escolha faz o final.
Uns a têm, outros não.
Simplesmente
uma face, outro lado.
Sinônimo da sobrevivência,
do excelente viver.
A medida é possuir a sorte
ou estar congelado ao azar.
Num país como o Brasil
é só o que conta.
Noutros também.
A vida é útil e bela em si.
Mas o seu fluxo,
seus destinos arbitrários
são injustos e desequilibrados.
Parecem arquitetados pela mente
mais doentia e perversa que
se pode imaginar existir como
a divindade de torto senso.
Honestidade é a fraqueza mais débil,
lealdade, um bilhete roído pelos ratos,
talento é escatologia,
inteligência para o bem, uma utopia,
cultura e elegância, motivação de
escárnio e deboche.
Supérfluos descartáveis.
A vida é vale-tudo,
golpe baixo, ética gasosa.
Condena alguns aos infortúnios
mais desesperados,
injustiças próprias às maldades
dos demônios,
castiga a quem não merece
e contempla guarida, confortos,
benefícios e extravagâncias
a quem nunca os apontou.
Esforços são dos tolos.
Ouro folhea biografias.
É assim por todo o lado.
Basta olhar ao lado.
Seja mau,
mentiroso,
enganador,
você será
admirado,
temido,
respeitado,
ganhará a proteção
dos deuses e
como prêmio,
o paraíso na Terra.