segunda-feira, 31 de outubro de 2016

levo a morte todo dia a passear
no parque, no café, nas noites de luar
animal estimado de bote certeiro,
nem coleira, 
livre, vai comigo porque quer, 
não há enganos entre nós, 
nem promessas
andamos libertas, sem rodeios 
temos uma a outra, como garantia
sem golpes, confiamos nos belos dias
e nos divertimos como vadias
a cada galanteio, generosa,
envia pequenas mortes
a cada novo amor, 
e me encanto
corro nua então, 
dou saltos mortais
sou sua, única e leal,
ainda, no fim, recebo rosas





de peito aberto
chamaste meu nome
dormi no corpo certo





acordei no corpo errado
dei por mim
virando pro lado

sábado, 29 de outubro de 2016

exaspero porque desespero
nada sério, além de belo e real
olhar de novo, olhar novo
simular que nada desfaz
as noites de março
nos dias de abril
e maios, onde fores
pois junhos e julhos
ausentes
guardam calor
pros setembros em flor
pros outubros
juntos






quinta-feira, 27 de outubro de 2016

desatenda-se o sujeito
até o sentimento ser verbo





desatenta ao pudor
mostrou partes queridas






segunda-feira, 24 de outubro de 2016

neste banco de jardim de todo dia,
xícara na mão, sabiá no galho
o destino se desata,
estanca o caminho da formiga
com a queda da flor do abacateiro,

não mais será fruto nem confirmação de rainha,
na coroa venta, sem  previsão de chuva,
desanda nuvem, sol que arde, som de buzina
mistura toada de bem-te-vi com o martelo do vizinho,
luz uma faísca no muro branco,
tem uma chance da paz ser caminho

neste sul de folhas, a respiração vem do chão,
todas as casas sacodem seus danos,
no meio fio, no fim da rua, levantam homens,
sacos plásticos, panos, espelhos na calçada,
o desatino de se mirar no reflexo humano





era domingo, a primavera mordia a madrugada
e a lua minguava no céu morno de outubro,
não,
era segunda, recém nascida,
cara lavada na sombra
escondida da chuva,
não,
era eu, esperava um sinal, uma brisa, um adeus
e a imensa noite que não saia de mim







Onde Estivestes de Noite



"As histórias não têm defeito" Alberto Dines"O desconhecido vicia" Fuazi Arap"Sentado na poltrona, com a boca cheia de dentes esperando a morte" Raul Seixas"O que vou anunciar é tão novo que receio ter todos os homens por inimigos, a tal ponto se enraízam no mundo os preconceitos e as doutrinas, uma vez aceitas"William Harvey


A noite era uma possibilidade excepcional. Em plena noite fechada de um verão escaldante um galo soltou seu grito fora de hora e uma só vez para alertar o início da subida pela montanha. A multidão embaixo aguardava em silêncio.
Ele-ela já estava presente no alto da montanha, e ela estava personalizada no ele e o ele estava personalizado no ela. A mistura andrógina criava um ser tão terrivelmente belo, tão horrorosamente estupefaciente que os participantes não poderiam olhá-lo de uma só vez: assim como uma pessoa vai pouco a pouco se habituando ao escuro e aos poucos enxergando. Aos poucos enxergavam o Ela-ele e quando o Ele-ela lhes aparecia com uma claridade que emanava dela-dele, eles paralisados pelo que é Belo diriam: "Ah, Ah". Era uma exclamação que era permitida no silêncio da noite. Olhavam a assustadora beleza e seu perigo. Mas eles haviam vindo exatamente para sofrer o perigo.
[...]
Aquela que de noite gritava "estou em espera, em espera", de manhã, toda desgrenhada disse para o leite na leiteira que estava no fogo:
- Eu te pego, seu porcaria! Quer ver se tu te mancas e ferves na minha cara, minha vida é esperar. É sabido que se eu desviar um instante o olhar do leite, esse desgraçado vai aproveitar para ferver e entornar. Como a morte que vem quando não se espera.
Ela esperou, esperou e o leite não fervia. Então, desligou o gás.
No céu o mais leve arco-íris: era o anúncio. A manhã como uma ovelha branca. Pomba branca era a profecia. Manjedoura. Segredo. A manhã preestabelecida. Ave-Maria, gratia plena, dominus tecum. Benedicta tu in mulieribus et benedictum frutus ventri tui Jesus. Sancta Maria Mater Dei ora pro nobis pecatoribus. Nunca et ora nostrae morte Amem.
Padre Jacinto ergueu com as duas mãos a taça de cristal que contém o sangue escarlate de Cristo. Eta, vinho bom. E uma flor nasceu. Um flor leve, rósea, com perfume de Deus. Ele-ela há muito sumira do ar. A manhã estava límpida como coisa recém-lavada.
AMÉM
Os fiéis distraídos fizeram o sinal da Cruz.

AMÉM
DEUS
FIM

Epílogo:
Tudo o que escrevi é verdade e existe. Existe uma mente universal que me guiou. Onde estivestes de noite? Ninguém sabe. Não tentes responder - pelo amor de Deus. Não quero saber da resposta. Adeus. A-Deus.

sexta-feira, 21 de outubro de 2016

clarice lispector

 PERDOANDO DEUS
Eu ia andando pela Avenida Copacabana e olhava distraída edifícios, nesga de mar, pessoas, sem pensar em nada. Ainda não percebera que na verdade não estava distraída, estava era de uma atenção sem esforço, estava sendo uma coisa muito rara: livre. Via tudo, e à toa. Pouco a pouco é que fui percebendo que estava percebendo as coisas. Minha liberdade então se intensificou um pouco mais, sem deixar de ser liberdade.
Tive então um sentimento de que nunca ouvi falar. Por puro carinho, eu me senti a mãe de Deus, que era a Terra, o mundo. Por puro carinho mesmo, sem nenhuma prepotência ou glória, sem o menor senso de superioridade ou igualdade, eu era por carinho a mãe do que existe. Soube também que se tudo isso “fosse mesmo” o que eu sentia – e não possivelmente um equívoco de sentimento – que Deus sem nenhum orgulho e nenhuma pequenez se deixaria acarinhar, e sem nenhum compromisso comigo. Ser-Lhe-ia aceitável a intimidade com que eu fazia carinho. O sentimento era novo para mim, mas muito certo, e não ocorrera antes apenas porque não tinha podido ser. Sei que se ama ao que é Deus. Com amor grave, amor solene, respeito, medo e reverência. Mas nunca tinham me falado de carinho maternal por Ele. E assim como meu carinho por um filho não o reduz, até o alarga, assim ser mãe do mundo era o meu amor apenas livre.
E foi quando quase pisei num enorme rato morto. Em menos de um segundo estava eu eriçada pelo terror de viver, em menos de um segundo estilhaçava-me toda em pânico, e controlava como podia o meu mais profundo grito. Quase correndo de medo, cega entre as pessoas, terminei no outro quarteirão encostada a um poste, cerrando violentamente os olhos, que não queriam mais ver. Mas a imagem colava-se às pálpebras: um grande rato ruivo, de cauda enorme, com os pés esmagados, e morto, quieto, ruivo. O meu medo desmesurado de ratos.
Toda trêmula, consegui continuar a viver. Toda perplexa continuei a andar, com a boca infantilizada pela surpresa. Tentei cortar a conexão entre os dois fatos: o que eu sentira minutos antes e o rato. Mas era inútil. Pelo menos a contigüidade ligava-os. Os dois fatos tinham ilogicamente um nexo. Espantava-me que um rato tivesse sido o meu contraponto. E a revolta de súbito me tomou: então não podia eu me entregar desprevenida ao amor? De que estava Deus querendo me lembrar? Não sou pessoa que precise ser lembrada de que dentro de tudo há o sangue. Não só não esqueço o sangue de dentro como eu o admiro e o quero, sou demais o sangue para esquecer o sangue, e para mim a palavra espiritual não tem sentido, e nem a palavra terrena tem sentido. Não era preciso ter jogado na minha cara tão nua um rato. Não naquele instante. Bem poderia ter sido levado em conta o pavor que desde pequena me alucina e persegue, os ratos já riram de mim, no passado do mundo os ratos já me devoraram com pressa e raiva. Então era assim?, eu andando pelo mundo sem pedir nada, sem precisar de nada, amando de puro amor inocente, e Deus a me mostrar o seu rato? A grosseria de Deus me feria e insultava-me. Deus era bruto. Andando com o coração fechado, minha decepção era tão inconsolável como só em criança fui decepcionada. Continuei andando, procurava esquecer. Mas só me ocorria a vingança. Mas que vingança poderia eu contra um Deus Todo-Poderoso, contra um Deus que até com um rato esmagado poderia me esmagar? Minha vulnerabilidade de criatura só. Na minha vontade de vingança nem ao menos eu podia encará-Lo, pois eu não sabia onde é que Ele mais estava, qual seria a coisa onde Ele mais estava e que eu, olhando com raiva essa coisa, eu O visse? no rato? naquela janela? nas pedras do chão? Em mim é que Ele não estava mais. Em mim é que eu não O via mais.
Então a vingança dos fracos me ocorreu: ah, é assim? pois então não guardarei segredo, e vou contar. Sei que é ignóbil ter entrado na intimidade de Alguém, e depois contar os segredos, mas vou contar – não conte, só por carinho não conte, guarde para você mesma as vergonhas Dele – mas vou contar, sim, vou espalhar isso que me aconteceu, dessa vez não vai ficar por isso mesmo, vou contar o que Ele fez, vou estragar a Sua reputação.
… mas quem sabe, foi porque o mundo também é rato, e eu tinha pensado que já estava pronta para o rato também. Porque eu me imaginava mais forte. Porque eu fazia do amor um cálculo matemático errado: pensava que, somando as compreensões, eu amava. Não sabia que, somando as incompreensões, é que se ama verdadeiramente. Porque eu, só por ter tido carinho, pensei que amar é fácil. É porque eu não quis o amor solene, sem compreender que a solenidade ritualiza a incompreensão e a transforma em oferenda. E é também porque sempre fui de brigar muito, meu modo é brigando. É porque sempre tento chegar pelo meu modo. É porque ainda não sei ceder. É porque no fundo eu quero amar o que eu amaria – e não o que é. É porque ainda não sou eu mesma, e então o castigo é amar um mundo que não é ele. É também porque eu me ofendo à toa. É porque talvez eu precise que me digam com brutalidade, pois sou muito teimosa. É porque sou muito possessiva e então me foi perguntado com alguma ironia se eu também queria o rato para mim. É porque só poderei ser mãe das coisas quando puder pegar um rato na mão. Sei que nunca poderei pegar num rato sem morrer de minha pior morte. Então, pois, que eu use o magnificat que entoa às cegas sobre o que não se sabe nem vê. E que eu use o formalismo que me afasta. Porque o formalismo não tem ferido a minha simplicidade, e sim o meu orgulho, pois é pelo orgulho de ter nascido que me sinto tão íntima do mundo, mas este mundo que eu ainda extraí de mim de um grito mudo. Porque o rato existe tanto quanto eu, e talvez nem eu nem o rato sejamos para ser vistos por nós mesmos, a distância nos iguala. Talvez eu tenha que aceitar antes de mais nada esta minha natureza que quer a morte de um rato. Talvez eu me ache delicada demais apenas porque não cometi os meus crimes. Só porque contive os meus crimes, eu me acho de amor inocente. Talvez eu não possa olhar o rato enquanto não olhar sem lividez esta minha alma que é apenas contida. Talvez eu tenha que chamar de “mundo” esse meu modo de ser um pouco de tudo. Como posso amar a grandeza do mundo se não posso amar o tamanho de minha natureza? Enquanto eu imaginar que “Deus” é bom só porque eu sou ruim, não estarei amando a nada: será apenas o meu modo de me acusar.Eu, que sem nem ao menos ter me percorrido toda, já escolhi amar o meu contrário, e ao meu contrário quero chamar de Deus. Eu, que jamais me habituarei a mim, estava querendo que o mundo não me escandalizasse. Porque eu, que de mim só consegui foi me submeter a mim mesma, pois sou tão mais inexorável do que eu, eu estava querendo me compensar de mim mesma com uma terra menos violenta que eu. Porque enquanto eu amar a um Deus só porque não me quero, serei um dado marcado, e o jogo de minha vida maior não se fará. Enquanto eu inventar Deus, Ele não existe.


LISPECTOR, Clarice. Felicidade clandestina, Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

segunda-feira, 17 de outubro de 2016

solidão cósmica

em algum lugar outra bolha desprende-se,
infinita e eterna,
universo em dez segundos,
filho de um pai sem espírito,
experimento galáctico

onde andaria deus?






terça-feira, 11 de outubro de 2016

desvisto ultrajes
as medidas transbordaram







domingo, 9 de outubro de 2016

eu desfiz tudo pra você gostar de mim





as aparências desenganam







vou pra grécia, nadar no mar egeu
colher marisco e coral, andar de peixe espada
mensagem só por farol ou garrafa arrolhada,
logo me reconhecerás, estou aqui, assino eu
mesmo sombra,
mesmo duplo,
atrás da vidraça
te vi único

quarta-feira, 5 de outubro de 2016

os dias


aí está vaso, terra, esperança e deus
escondidos nos dias
quando não olhas a flor que plantei

os gestos e os objetos

observo a flor
ouço o vento
estendo a mão
danço mambo
canto só
quero muito
não faço concessões

sábado, 1 de outubro de 2016

desconcerto



de um pulo só,
veio o coração do peito,
pela boca saiu de vez,
não houve voz, não houve jeito,
levantou menina e cadeira
frio na barriga, palidez,
isto é coisa que se faça, debandando sem porteira
perseguida pela flecha que nunca erra
alvo que é posto, olhar do moço

da lembrança na retina, te perdes toda noite,
abre o peito, ó menina, deixa o amor pra poesia,
abre os olhos, ó menina, acorda sem fantasia
lembra da lua que dorme de dia
pra que imagines na sombra, outra noite clarear
tantas palavras podem ser luz
podem ser chama a iluminar