terça-feira, 23 de agosto de 2011

A hiléia dos teus cabelos



( do Carlos Eugenio Petrucci)
- Gostaria de me embrenhar na hiléia dos teus cabelos...
- Pô cara! Enlouqueceste? Piraste?
- Como assim? Respondo com a voz um pouco trêmula.
- Ora, como assim... Há dez segundos tu estavas contando uma das histórias da tua vida, de como querias mudar o mundo na tua adolescência, e do nada, vens com essa frase nada a ver?
Completa e absolutamente fora do contexto?
Respirei fundo, tomei mais um gole de cerveja e, ainda sem o domínio completo da voz, olhei com força no fundo dos olhos dela e respondi relutante:
- Por uma vida inteira, inteira mesmo, por mais de meio século, sempre esperei uma oportunidade para dizer ou escrever isso. É um inferno!!! Jamais surgiu um única chance... Talvez até tenha havido uma ou outra oportunidade, quem sabe, mas nunca falei. Então resolvi dizer assim mesmo, sem preocupação com o contexto, sem me importar sequer com o corretor gramatical do Word que insiste em sublinhar “hiléia” com uma cobrinha vermelha. Foda-se, agora tá dito!!! E escrito!!!
- Tá, tá bom... Voltando ao assunto...
Me recompus, fingi ajeitar a manga da camisa, cocei uma coceira inexistente na orelha e prossegui:
- A Da. Neusa era uma das minhas professoras preferidas. Bastante exigente e severa, mas eu era apaixonado por ela. Era o que hoje poderíamos dizer ser uma híbrida da Margareth Tatcher e do Stalin.
- E ainda assim gostavas dela?
- Gostava! Gostava porque ela procurava combater a minha timidez, com as armas que ela tinha. Professora de português, com frequência ela me obrigava a dissertar sobre qualquer coisa, na frente de todo o mundo!
- Grande coisa...
- Tá. Certa vez, ela pediu que nós, os Experimentais, percorrêssemos o bairro a procura de cartazes e placas que contivessem erros gramaticais e ortográficos. Era nosso dever alertar os proprietários das lojas, armazéns, botecos e oficinas, e esperar que corrigissem.
- Vocês eram muito metidos, hein?
- Nós éramos Experimentais. Podíamos tudo. Podíamos mudar o mundo.
- Senti firmeza, comecei a gostar... Continua!
- Os invernos eram rigorosos àquela época. Final de tarde, eu estava encarangando de frio na parada de ônibus ali na Praia de Belas, junto a Botafogo, sob um imenso salso chorão. O Guaíba, gélido, estava a poucos metros dali, acho que o aterro recém estava sendo feito. Putz, e essa droga de 78 que não vem.
- 78?
- Pô, tu és alienígena ou alienada? O 78 era a linha de ônibus, fofa. De repente, olhei uma pequena oficina na calçada oposta e vi uma placa com os dizeres: “CONCERTA-SE SAPATOS”. Dois erros crassos e brutais. Era tudo o que eu precisava prá começar a mudar o mundo! Só faltava a coragem.
Era na verdade uma pequena casa pintada de amarelo desbotado cuja fachada se projetava até a calçada. Havia uma abertura grande, como se fosse uma porta de garagem e, ao lado, uma janela. Meio na penumbra, consegui ver que havia no interior um balcão e atrás dele, um senhor de barba branca trabalhando.
- Que idade tu tinhas mesmo?
- Sei lá... Acho que foi na segunda ou terceira série. Talvez eu tivesse doze ou treze anos. Bem, como o ônibus demorava a vir, me enchi de coragem e atravessei a rua. Encarei o velhinho... Acho que fingi ajeitar a manga da camisa, cocei uma coceira inexistente na orelha e falei com voz de bombinha de São João que não explodiu:
- Senhor...
O velhinho levantou os olhos e me olhou por sobre os óculos. Havia nele uma doçura, uma bondade, um calor humano, um sei lá o quê, que me atingiu como um tomate maduro.
- Sim?
Gaguejei um pouco. Recuei um passo. Procurei um pouco de ar, já que o que havia estava rarefeito ou inexistente. Do âmago do meu ser, do fundo da minha alma, das entranhas da minha curiosa existência, balbuciei:
- Quanto custa mesmo uma meia-sola?
E assim, naquele exato momento descobri que, mais que mudar o mundo, é preciso compreender a essência de todo o ser humano, a começar por nós mesmos. E eu pude me compreender um pouco melhor. Mudaria alguma coisa explicar ao velhinho o erro ortográfico e da voz passiva em sua placa?
- Passiva seria a tua voz, se tivesses falado.
- Tens razão. E a Da. Neusa jamais soube que eu não corrigi o velhinho. Aliás, ela jamais soube de muita coisa a meu respeito. Como ela era bem ajeitadinha e solteira, muitas e muitas vezes desejei me embrenhar na hiléia dos cabelos dela...

*Significado: Hi.léi.a
sf (gr hýle) Hist nat Nome proposto pelo sábio Humboldt para designar a
floresta equatorial que vai das encostas orientais dos Andes, por todo o
vale do Amazonas, até as Guianas.



Exemplo: A hiléia Amazônica possui o maior banco genético da Terra, ou seja,
é uma área de grande biodiversidade.

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