sábado, 19 de dezembro de 2009
A língua única de Schlee e suas múltiplas vozes
Pois bem, volto à leitura, ainda inacabada, mas impaciente por ser regurgitada. O certo, dentro da realidade crua que Schlee nos apresenta seria dizer vomitada mesmo.
Com suas doze mulheres, que nos falam ou são faladas, Schlee se converte num escritor que entende plenamente o feminino. Sentimos o que elas sentem e mesmo o que há de mais íntimo aparece na escritura desse autor múltiplo.
Regionalista. Não. É pouco. Fronteiriço. Com certeza. Acima de tudo, universal.
Universal porque conversa e converge com o mundo e as vidas pequenas e a escrita enorme e vigorosa de um registro único, de um autor idem. Narrativa na fronteira, escritura no mundo.
Quiçá a fronteira seja realmente o único lugar possível para estar no limite do impossível do universo que Schlee propõe.
A língua única de Schlee e suas múltiplas vozes.
Superamos a barreira limite. Superamos mesmo o entre lugar. A fronteira é O lugar. O lugar onde se pode escrever numa língua única, a língua de Schlee, que doma, alumbra e alambra aquilo que não pode ser cerc(e)ado: uma identidade, uma maneira una, porém múltipla de ser e estar nesse mundo tão homogeneizado por uma cultura de massa, mas ao mesmo tempo, tão sedento de representações próprias de seu próprio teto – ainda mais quando o teto são estrelas feitas de letras.
Ao ler Schlee se me escorrem as certezas e as tipificações acerca da literatura regional, pois ela repete as pátrias pequenas de todos os lugares, e isso a torna muito maior. Schlee bebe num tempo perdido que parece que ficou pra trás, mas que nunca nos abandona – os Oitocentos, tão únicos e tão fundadores de nossa cultura -, mas, ao mesmo tempo, projeta o presente e o futuro numa linguagem que ziguezagueia entre o ocorrido e o devir, como se o tempo passado continuasse sendo narrado ad infinitum até virar o agora – e o que resta é o que somos hoje. E aí somos brindados por “documentos” que atestam a existência “real” dos fatos em questão, como se estivéssemos lendo a correspondência ativa de alguma personalidade do século XIX cuja voz só apareceu hoje. Essa é uma narrativa intemporal, coloca-se, parece, no passado, mas flerta como se fosse hoje o tempo inteiro.
Nessa costura narrativa Schlee não perde o fio da meada e o que parecem ser contos interligados converte-se em um romance polifônico, onde cada voz representa uma protagonista feminina que reveste de significados próprios uma história coletiva com interpretações pessoais de rara beleza e força marcantes. Todas elas têm razão. Todas elas têm a sua razão. Todos os contos são delas e de quem mais for narrando. E o perverso se justifica; não fosse ele não haveriam doze mulheres que contam e que são contadas, não haveria Gardel, não haveria esse livro mágico de Schlee.
As múltiplas vozes de Schlee são proferidas por mulheres da vida, no sentido de que são absolutamente verossímeis: elas estão – ou melhor, estavam – nas fazendas, nos arrabaldes, no limite do urbano, nas cidadezinhas de uma enorme fronteira que se alarga cada vez mais em nosso imaginário: os limites entre o mundo hispânico e o luso no sul da América do Sul e mais ainda: nos limites de um mundo real e de outro inventado, onde as barreiras são tão tênues que impossíveis de serem visualizadas. O que fica é a impressão de que tudo é possível dentro dessa pretensa impossibilidade porque absolutamente visível nas imagens e paisagens interiores dessas mulheres. A vida doméstica, a alcova, os segredos, tudo aquilo que se sabe e que se oculta, tudo sobre o que se deve calar está lá. Schlee não esconde toda a devassidão de homens e mulheres, incesto, estupro, gozo, prazer. É nas margens que tudo acontece. É na fronteira do impossível que vivemos e escrevemos nossas vidas permanentemente.
Há espaço pra tudo na prosa de Schlee: para homens sedentos de sexo, para mulheres que não abrem mão de seu prazer – por inusitado ou amoral que seja -, para mucamas que vêem mais do que deveriam, para chinas que não se contentam em ser chinas, para filhas que não são apenas filhas, mas cúmplices, amantes, mães.
E essa é nossa América profunda. O sul, ao qual volvemos sempre, não se olvida. E é no cruzamento – e não no entrechoque – dessa língua particular que Schlee, tradutor, escritor e fronteiriço escreve. É uma língua toda sua, o teto sob o qual se abriga. Sob o qual abriga as raízes de sua cultura. Mas se abriga, não se esconde, porque o trunfo desses contos gardelianos é justamente uma realidade ficcional verossímil completamente exposta.
Doi. Schlee não alivia. Mas um tango, pra ser bem cantado, precisa dessa dor. E se Gardel precisava de uma pré história pra existir ainda mais completamente ela já foi contada. E quem não acreditar que invente um causo melhor. Depois de Schlee há que ser muito bagual pra conseguir.
* Infelizmente agora eu já li. Mas continuarei lendo.
quinta-feira, 17 de dezembro de 2009
as folhas de Setembro
A cadela viu o papel jogado fora, mais um que Setembro jogava de cima do viaduto. Como flores de malmequer ele desfolhava os papéis, o fardo que desfazia, voo lento , vento fraco, o carro embaixo passando, o papel colando no vidro, um motorista freiando leitor de parabrisa no meio do desastre,
porque não consigo segurar as palavras porque as palavras escapam porque as palavras me estrangulam é que te escrevo de dentro deste caftan de flores gigantes com cheiro de mitsouko com este corpo quente com este calor ardente com as palavras que estão presas palavras só tuas porque não sabes vieram de longe guardadas a sete chaves tenho ficado muda cariátide invisível no templo em ruínas e preciso voltar são palavras do passado não sabes devo contar devo cortar a jugular devo sangrar agora que te encontras preso entre este quarto e o passado agora que vives respirando o passado e repetindo as fórmulas da tua poiética nesta tarde entre a cristaleira e a colcha de flores o pó cobriu as palavras eu ase espanei e elas borbulharam na boca esta boca
foi o que conseguiu ler antes da folha voar novamente e ir pro chão.
sábado, 12 de dezembro de 2009
quarta-feira, 9 de dezembro de 2009
quarta-feira, 2 de dezembro de 2009
A noite branca de Pelotas
paisagem
Desta cadeira giroflex velha sem braços me amparo para ver a cidade que entardece. O céu nubla e desvenda o cinza, o vento carrega nuvens, traz de volta o azul. Eu desemaranhando pensamentos de fim de tarde numa cidade que se prepara para o sono, cidade que dorme que perde a memória. Desta janela sobre os pátios do Bonfim ainda casas com telhados trazendo música de outros telhados teclados por algum músico em Paris sonhando telhados do Bonfim. Um fiozinho de luz desenrola um jato na direção do parque pegando galhos e folhas no reflexo dum temporalzinho que molhou o jardim e os pés de alecrim e manjericão. Perto o piado do passaredo segue a sina despedindo o dia. No fundo o ronco do trânsito aumenta e permanece mesmo depois do silencio perto aparecer e a sombra baixar como uma amiga abraçando a esfera azulada que cobre este teto. A cidade mais clara longe cai na luz do rio e escurece, a cidade mais perto se ilumina. Busco a linha que desenhei no tempo em que ficava a desenhar e me pego largando a mesma linha sentada nesta giroflex sem braços na beira do dia que se despede. O rio continua na corrente da paisagem onde me emaranhei. Anoitecei, vou lá dentro consertar o pé do banquinho e já volto.
Coração de sílex
Como um felix ronronando oxítonas,
um amplexo levou-me ao êxtase!
Expectorei perplexa,
Nem precisa explicar!
Depois, como antrax, me devorou!
Fiquei extática, com tal exótico, de Rolex,
que sexo!
Meu córtex, puro
mas...e o êxtase?
Perplexa ante o paradoxo
exerci a lex,
- sed lex, sed durex-
muiiiiito durex!
Com Tetrex e Tilex,
pedidos à Medex,
examinei as oxidações,
marinei bife em pirex,
apliquei sobre as extravagâncias.
Só Kleenex me consolou!
E botox!
Extraí látex do coração,
lágrimas extraditadas, exiladas
me auxiliaram a não ser Chatatonix!
Por telex o expulsei,
vivo feliz com Obelix!
Extraordinariamente, sem anexos,
Apesar da fixação em X-Man
Madame X
terça-feira, 1 de dezembro de 2009
O mundo é o mar
e eu querendo
Déjà vu
apressa-te lentamente
enquanto me movo no teu corpo,
tua língua inscreve outras línguas
deixando o óleo da tua passagem
escreve-te lentamente
enquanto deslizo no teu sexo
e deixas a morte e deixas o bem
como sombra alongada sobre mim
acende lentamente uma a uma
as constelações que pulsam dentro de mim,
tua pele reflete na minha o lugar marcado
que há de ficar fulgurando dia e noite
vive lentamente enquanto desertas de ti,
e de mim, no reencontro vive,
deixa-me lentamente
com o universo estar
segunda-feira, 30 de novembro de 2009
domingo, 29 de novembro de 2009
nestes domingos
nestes domingos que afloram no meu jardim,
pego tua mão e percorro a paisagem
apontando as formigas que fazem,
incansavelmente o mesmo caminho,
indo e voltando,
da fonte ao ninho, com um peso insuportável;
nestas manhãs que chegam azuis, invasivas e iluminadas,
te mostro como as partículas que não vês,
suspensas pela energia e por deus tem mágica;
que o observador faz o elétron mudar de comportamento,
que a matéria pula na onda e surfa no espaço,
que para tudo tem uma dança sincronizada,
que é um milagre ter um filho perfeito,
que nestes domingos solitários há uma razão
para que a palavra mude de lugar e
o calor da tua mão invada o meu peito,
com a leveza que circula
entre o azul, a formiga e deus
sexta-feira, 27 de novembro de 2009
Aqui onde a terra finda,
fico como quem ama.
De tanto imaginar,
o amado tornar-se,
De mais amar,
sonhar o início,
tornar e voltar,
à rota do precipício.
Sendo só e sendo vento,
tornar-se uno,
nenhum evento,
além do falso fundo.
Chegando uno,
chega-se ao nada.
Nada como fim,
do próprio voo solitário.
Onde estão os dias?
Onde estão as noites?
O ser alado, deitando fora
açoite e asa,
Ao ser retorna em brasa.
quinta-feira, 26 de novembro de 2009
quarta-feira, 25 de novembro de 2009
sei dessa dor que não passa, sei desse gozo que sobrevive
a todos os desejos, a todos os minutos, a cada centímetro do tempo
e o peso do fardo de plumas e a leveza do saco de facas
que paralizam o movimento, animal prostrado na soleira do mundo
e o tempo comendo o ser exíguo, e o tempo arrotando luas
e o tempo opaco de estrelas e essa espera, e essa espreita
terça-feira, 24 de novembro de 2009
ainda luz
de suor e de luz, no trabalho brilha a pele,
como espelho mostrando a construção,
o carro, o trilho, a trama, o pão,
pois do suor reflete a luz que luz
como espelho, o fundo do olho que brilha
e que ilumina o trabalho de todo dia,
que na pele suada do trabalho anima
e reflete a pele que brilha na pele,
que brilha como espelho no fundo do olho
do coração
segunda-feira, 23 de novembro de 2009
êta chuvinha!
Num dia do homem...
Num dia do homem estão os dias
do tempo, desde aquele inconcebível
dia inicial do tempo, em que um terrível
Deus prefixou os dias e agonias
até aquele outro em que o ubíquo rio
do tempo terrenal torne à sua fonte
que é o Eterno, e se apague no presente,
o futuro, o ontem, o que agora é meu.
Entre a alva e a noite está a história
universal. Do fundo da noite vejo
a meus pés o caminho do hebreu,
Cartago aniquilada, Inferno e Glória.
Dá-me, Senhor, Coragem e alegria
para escalar o cume deste dia.
domingo, 22 de novembro de 2009
segunda-feira, 16 de novembro de 2009
"festina lente"
enquanto moves teu corpo no meu,
tua língua inscreve outras línguas
marcando o local exato
escreve-te lentamente
enquanto penetras teu pau
e deixas a morte e o bem,
acende lentamente, uma a uma,
as constelações que pulsam em mim,
enquanto tua pele brilha na minha,
apressa-te lentamente,
de ti, deserta,
de mim, reencontra,
deixa-me lentamente,
estar no universo
quinta-feira, 12 de novembro de 2009
desde Lefka a Famagusta
Caminhar no entardecer
de Ledraq
esbarrando em muros
esmurrando pedras,
tropeçando na quase noite
da terra cindida.
O mato cresce, linha verde,
sobre as bandeiras e sentinelas
e também há flores por lá,
capões florescidos
no quase médio oriente.
Dentro do coração sangrado da
muralha tecida por venezianos,
fecho meus olhos e corro por Ledr,
rumo à mesquita.
Cruzados dormem na velha catedral.
Tudo continua dividido,
minha pequena Afrodite.
Se os deuses soubessem,
se os deuses vivessem
não nos separariam jamais!
Desde Lefka a Famagusta,
no caminho mediterrâneo,
onde o azul empalidece.
quarta-feira, 11 de novembro de 2009
fragmentos de setembro
terça-feira, 10 de novembro de 2009
Cold in hand blues
y qué es lo que vas a decir
voy a decir solamente algo
y qué es lo que vas a hacer
voy a ocultarme en el lenguaje
y por qué
tengo miedo
o tempo
há infinitas possibilidades de viver
o tempo,
a sombra sobre mim
se alonga,
o vilão é o minuto que não passa,
e o tempo que é
o dono de tudo
de todos o minutos
que não passam
e não são passado nem futuro,
há infinitas possibilidades
de viver agora,
há infinitas possibilidades
nesse tecido
nessa pele nessa trama
do infinito momento
presente,
nenhuma palavra
passada
nenhum suspiro
futuro
há infinitas
palavras presentes,
e silêncios, e silêncios
no infinito momento
do claro presente
que o tempo dá,
há também uma vida
que se espera viver
vivendo esta,
uma que nunca chega,
uma outra vida,
que o tempo tomará.
segunda-feira, 9 de novembro de 2009
Morrerei de um câncer na coluna vertebral
Será uma noite horrível
Clara, quente, perfumada, sensual
Morrerei de um apodrecimento
De certas células pouco conhecidas
Morrerei de uma perna arrancada
Por um rato gigante surgido de um buraco gigante
Morrerei de cem cortes
O céu terá desabado sobre mim
Estilhaçando-me como um vidro espesso
Morrerei de uma explosão de voz
Perfurando minhas orelhas
Morrerei de feridas silenciosas
Infligidas às duas da madrugada
Por assassinos indecisos e calvos
Morrerei sem perceber
Que morro, morrerei
Sepultado sob as ruínas secas
De mil metros de algodão tombado
Morrerei afogado em óleo de cárter
Espezinhado por imbecis indiferentes
E, logo a seguir, por imbecis diferentes
Morrerei nu, ou vestido com tecido vermelho
Ou costurado num saco com lâminas de barbear
Morrerei, quem sabe, sem me importar
Com o esmalte dos dedos do pé
E com as mãos cheias de lágrimas
E com as mãos cheias de lágrimas
Morrerei quando descolarem
Minhas pálpebras sob um sol raivoso
Quando me disserem lentamente
Maldades ao ouvido
Morrerei de ver torturarem crianças
E homens pasmos e pálidos
Morrerei roído vivo
Por vermes, morrerei com as
Mãos amarradas sob uma cascata
Morrerei queimado num incêndio triste
Morrerei um pouco, muito,
Sem paixão, mas com interesse
E quando tudo tiver acabado
Morrerei.
"hotel fraternité"
Aquele que derrama vinho rubro na cama sórdida
Aquele que toca fogo em cartas e fotografias
Aquele que vive sentado nas docas debaixo das gaivotas
Aquele que alimenta os esquilos
Aquele que não tem um centavo
Aquele que observa
Aquele que dá socos na parede
Aquele que grita
Aquele que bebe
Aquele que não faz nada
domingo, 8 de novembro de 2009
medusas
sexta-feira, 6 de novembro de 2009
Cortázar
quinta-feira, 5 de novembro de 2009
um poema
"Quero uma vida em forma de espinha
Num prato azul
Quero uma vida em forma de coisa
No fundo de um troço solitário
Quero uma vida em forma de areia nas mãos
Em forma de pão verde ou de moringa
Em forma de sapato velho
Em forma de tiroliroliro
De limpa-chaminés ou de lilás
De terra coberta de seixos
De cabeleireiro selvagem ou de edredom louco
Quero uma vida em forma de você
E a tenho, mas ainda não é o bastante
Nunca estou contente."
quarta-feira, 4 de novembro de 2009
terça-feira, 3 de novembro de 2009
domingo, 1 de novembro de 2009
Vazio
Havia um vazio à minha frente,
mas eu só enxergava picanha...
Meu desejo absoluto neste domingo solar!
Permaneci séculos, horas,
momentos infindáveis de olho na prateleira do super,
escolhendo a picanha ideal!
Cheguei em casa com um pacote de vazio...
Como picanha é parecida com o vazio, assim, embalada!
O que fazer com o imenso vazio de domingo,
perguntava a cadela, sem Setembro nem Gre-Nal...
Pois, a imaginar a picanha perdida, o ser pensou,
como se pudesse pensar...
Havia o grande vazio a preparar.
-Colocarei no fogo a cozer com as ervas daninhas!
São as pequenas coisas que fazem quase tudo, diria Setembro,
e também com o vinho que sobrou,
um fundo de quase nada, com o sal do vento-
assim pensei, a focinhar o mormaço da tarde,
enquanto esperava o vazio cozinhar.