sábado, 19 de dezembro de 2009

A língua única de Schlee e suas múltiplas vozes

Leio “Os limites do impossível – contos gardelianos”, de Aldir Garcia Schlee*. A curiosidade era grande, já que em junho eu havia assistido ao autor na Palavraria, discorrendo, contando, charlando sobre essa obra ainda à procura de um editor. E o Alfredo Aquino teve a sensibilidade e a decência de correr atrás e publicar o Schlee, que, pasmem, não tinha editor. Em tempos de crespúsculos de uma certa literatura, às vezes é isso o que nos resta. Ainda bem que existe o Schlee, pra eclipsar uma forma tão empobrecida de contar histórias.
Pois bem, volto à leitura, ainda inacabada, mas impaciente por ser regurgitada. O certo, dentro da realidade crua que Schlee nos apresenta seria dizer vomitada mesmo.
Com suas doze mulheres, que nos falam ou são faladas, Schlee se converte num escritor que entende plenamente o feminino. Sentimos o que elas sentem e mesmo o que há de mais íntimo aparece na escritura desse autor múltiplo.
Regionalista. Não. É pouco. Fronteiriço. Com certeza. Acima de tudo, universal.
Universal porque conversa e converge com o mundo e as vidas pequenas e a escrita enorme e vigorosa de um registro único, de um autor idem. Narrativa na fronteira, escritura no mundo.
Quiçá a fronteira seja realmente o único lugar possível para estar no limite do impossível do universo que Schlee propõe.
A língua única de Schlee e suas múltiplas vozes.
Superamos a barreira limite. Superamos mesmo o entre lugar. A fronteira é O lugar. O lugar onde se pode escrever numa língua única, a língua de Schlee, que doma, alumbra e alambra aquilo que não pode ser cerc(e)ado: uma identidade, uma maneira una, porém múltipla de ser e estar nesse mundo tão homogeneizado por uma cultura de massa, mas ao mesmo tempo, tão sedento de representações próprias de seu próprio teto – ainda mais quando o teto são estrelas feitas de letras.
Ao ler Schlee se me escorrem as certezas e as tipificações acerca da literatura regional, pois ela repete as pátrias pequenas de todos os lugares, e isso a torna muito maior. Schlee bebe num tempo perdido que parece que ficou pra trás, mas que nunca nos abandona – os Oitocentos, tão únicos e tão fundadores de nossa cultura -, mas, ao mesmo tempo, projeta o presente e o futuro numa linguagem que ziguezagueia entre o ocorrido e o devir, como se o tempo passado continuasse sendo narrado ad infinitum até virar o agora – e o que resta é o que somos hoje. E aí somos brindados por “documentos” que atestam a existência “real” dos fatos em questão, como se estivéssemos lendo a correspondência ativa de alguma personalidade do século XIX cuja voz só apareceu hoje. Essa é uma narrativa intemporal, coloca-se, parece, no passado, mas flerta como se fosse hoje o tempo inteiro.
Nessa costura narrativa Schlee não perde o fio da meada e o que parecem ser contos interligados converte-se em um romance polifônico, onde cada voz representa uma protagonista feminina que reveste de significados próprios uma história coletiva com interpretações pessoais de rara beleza e força marcantes. Todas elas têm razão. Todas elas têm a sua razão. Todos os contos são delas e de quem mais for narrando. E o perverso se justifica; não fosse ele não haveriam doze mulheres que contam e que são contadas, não haveria Gardel, não haveria esse livro mágico de Schlee.
As múltiplas vozes de Schlee são proferidas por mulheres da vida, no sentido de que são absolutamente verossímeis: elas estão – ou melhor, estavam – nas fazendas, nos arrabaldes, no limite do urbano, nas cidadezinhas de uma enorme fronteira que se alarga cada vez mais em nosso imaginário: os limites entre o mundo hispânico e o luso no sul da América do Sul e mais ainda: nos limites de um mundo real e de outro inventado, onde as barreiras são tão tênues que impossíveis de serem visualizadas. O que fica é a impressão de que tudo é possível dentro dessa pretensa impossibilidade porque absolutamente visível nas imagens e paisagens interiores dessas mulheres. A vida doméstica, a alcova, os segredos, tudo aquilo que se sabe e que se oculta, tudo sobre o que se deve calar está lá. Schlee não esconde toda a devassidão de homens e mulheres, incesto, estupro, gozo, prazer. É nas margens que tudo acontece. É na fronteira do impossível que vivemos e escrevemos nossas vidas permanentemente.
Há espaço pra tudo na prosa de Schlee: para homens sedentos de sexo, para mulheres que não abrem mão de seu prazer – por inusitado ou amoral que seja -, para mucamas que vêem mais do que deveriam, para chinas que não se contentam em ser chinas, para filhas que não são apenas filhas, mas cúmplices, amantes, mães.
E essa é nossa América profunda. O sul, ao qual volvemos sempre, não se olvida. E é no cruzamento – e não no entrechoque – dessa língua particular que Schlee, tradutor, escritor e fronteiriço escreve. É uma língua toda sua, o teto sob o qual se abriga. Sob o qual abriga as raízes de sua cultura. Mas se abriga, não se esconde, porque o trunfo desses contos gardelianos é justamente uma realidade ficcional verossímil completamente exposta.
Doi. Schlee não alivia. Mas um tango, pra ser bem cantado, precisa dessa dor. E se Gardel precisava de uma pré história pra existir ainda mais completamente ela já foi contada. E quem não acreditar que invente um causo melhor. Depois de Schlee há que ser muito bagual pra conseguir.


* Infelizmente agora eu já li. Mas continuarei lendo.


uma ou mais?
mais uma!
é cria do medo?
o medo cria?

uma duvida
outra divide

se a obsessão é dádiva
nem com a diva minha vida
prefiro essa minha manîa
de te amar noite e dia

quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

as folhas de Setembro


A cadela viu o papel jogado fora, mais um que Setembro jogava de cima do viaduto. Como flores de malmequer ele desfolhava os papéis, o fardo que desfazia, voo lento , vento fraco, o carro embaixo passando, o papel colando no vidro, um motorista freiando leitor de parabrisa no meio do desastre,

porque não consigo segurar as palavras porque as palavras escapam porque as palavras me estrangulam é que te escrevo de dentro deste caftan de flores gigantes com cheiro de mitsouko com este corpo quente com este calor ardente com as palavras que estão presas palavras só tuas porque não sabes vieram de longe guardadas a sete chaves tenho ficado muda cariátide invisível no templo em ruínas e preciso voltar são palavras do passado não sabes devo contar devo cortar a jugular devo sangrar agora que te encontras preso entre este quarto e o passado agora que vives respirando o passado e repetindo as fórmulas da tua poiética nesta tarde entre a cristaleira e a colcha de flores o pó cobriu as palavras eu ase espanei e elas borbulharam na boca esta boca

foi o que conseguiu ler antes da folha voar novamente e ir pro chão.

chegando

lembra?

sábado, 12 de dezembro de 2009

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

A noite branca de Pelotas

05 de dezembro 2009 - Programação da Noite Branca
18h - Abertura da mostra Conexões Infinitas -
Fotografias de Gilberto Perin.
• Mezzanino do Hotel Jacques Georges Tower -
Rua Almirante Barroso, 2069
Exposição de 05 de dezembro a 27 de dezembro de 2009
19h - Abertura das mostras Apenas Pintura -
Pinturas de Alfredo Aquino;
Seminal - Esculturas de Gonzaga;
Aula de Gravura -
Gravuras de Angela Pohlmann,
Emanoel Araújo, Francis Bacon,
Isolde Bosak, Maria Inês Rodrigues,
Miriam Tolpolar, Pierre Alechinsky e Karel Appel.
MALG - Museu de Arte Leopoldo Gotuzzo -
Rua Gal. Osório, 725
Exposições de 05 de dezembro a 27 de dezembro de 2009
20h - Abertura da mostra Fronteira Sul -
Fotografias de Leopoldo Plentz.
Instituto João Simões Lopes Neto - Rua Dom Pedro II, 810
Exposição de 05 de dezembro a 27 de dezembro de 2009
21h- Apresentação e lançamento do livro Os limites do impossível,
de Aldyr Garcia Schlee -
Coquetel e apresentação de tangos, pelo
Prof. José Luis Marasco Cavalheiro Leite -
Noite de autógrafos pelo autor.
Instituto João Simões Lopes Neto - Rua Dom Pedro II, 810
Evento especial no dia 05 de dezembro de 2009
23h - Apresentação de cinema em DVDs -
Gaúchos Canarinhos, direção de Renê Goya Filho
(Produção Estação Elétrica) - Realização RBS TV ;
e A Ferro e Fogo - Tempo de Solidão,
direção de Gilberto Perin, da obra de Josué Guimarães -
Realização RBS TV
Instituto João Simões Lopes Neto - Rua Dom Pedro II, 810
Evento especial no dia 05 de dezembro de 2009
Imagem: Noite Branca - Fotografia de Gilberto Perin (Pelotas RS Brasil), 2009

paisagem



Desta cadeira giroflex velha sem braços me amparo para ver a cidade que entardece. O céu nubla e desvenda o cinza, o vento carrega nuvens, traz de volta o azul. Eu desemaranhando pensamentos de fim de tarde numa cidade que se prepara para o sono, cidade que dorme que perde a memória. Desta janela sobre os pátios do Bonfim ainda casas com telhados trazendo música de outros telhados teclados por algum músico em Paris sonhando telhados do Bonfim. Um fiozinho de luz desenrola um jato na direção do parque pegando galhos e folhas no reflexo dum temporalzinho que molhou o jardim e os pés de alecrim e manjericão. Perto o piado do passaredo segue a sina despedindo o dia. No fundo o ronco do trânsito aumenta e permanece mesmo depois do silencio perto aparecer e a sombra baixar como uma amiga abraçando a esfera azulada que cobre este teto. A cidade mais clara longe cai na luz do rio e escurece, a cidade mais perto se ilumina. Busco a linha que desenhei no tempo em que ficava a desenhar e me pego largando a mesma linha sentada nesta giroflex sem braços na beira do dia que se despede. O rio continua na corrente da paisagem onde me emaranhei. Anoitecei, vou lá dentro consertar o pé do banquinho e já volto.

Coração de sílex



Como um felix ronronando oxítonas,
um amplexo levou-me ao êxtase!
Expectorei perplexa,
Nem precisa explicar!

Depois, como antrax, me devorou!
Fiquei extática, com tal exótico, de Rolex,
que sexo!

Meu córtex, puro
mas...e o êxtase?

Perplexa ante o paradoxo
exerci a lex,
- sed lex, sed durex-
muiiiiito durex!

Com Tetrex e Tilex,
pedidos à Medex,
examinei as oxidações,
marinei bife em pirex,
apliquei sobre as extravagâncias.

Só Kleenex me consolou!
E botox!

Extraí látex do coração,
lágrimas extraditadas, exiladas
me auxiliaram a não ser Chatatonix!

Por telex o expulsei,
vivo feliz com Obelix!
Extraordinariamente, sem anexos,
Apesar da fixação em X-Man

Madame X

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

O mundo é o mar


E vejo-me fazendo a viagem de volta,
colando ponteiro em bússola,
acordando para trás relógios e rotas,
tomando imagens de Nossa Senhora,

- Protegei os navegantes,
eles não sabem o que fazem -
das Indias, das especiarias, das tormentas.

O oceano calmo, o oceano ânimo,
e eu a respirar debaixo d'água,
e eu a voltar para a terra de onde nunca saí.

Que porto me acolherá?
Será noite, será norte?
Será a terra que divisava outra terra dividida,
metade tua, metade alheia?

E eu a soprar velas e eu a abanar lágrimas.
E a terra a se afastar e o mar a se apartar,
e o porto e o destino.

O mundo é o mar, e eu querendo voltar,
e eu querendo

Déjà vu


apressa-te lentamente
enquanto me movo no teu corpo,
tua língua inscreve outras línguas
deixando o óleo da tua passagem

escreve-te lentamente
enquanto deslizo no teu sexo
e deixas a morte e deixas o bem
como sombra alongada sobre mim

acende lentamente uma a uma
as constelações que pulsam dentro de mim,
tua pele reflete na minha o lugar marcado
que há de ficar fulgurando dia e noite

vive lentamente enquanto desertas de ti,
e de mim, no reencontro vive,
deixa-me lentamente
com o universo estar