
Pois bem, volto à leitura, ainda inacabada, mas impaciente por ser regurgitada. O certo, dentro da realidade crua que Schlee nos apresenta seria dizer vomitada mesmo.
Com suas doze mulheres, que nos falam ou são faladas, Schlee se converte num escritor que entende plenamente o feminino. Sentimos o que elas sentem e mesmo o que há de mais íntimo aparece na escritura desse autor múltiplo.
Regionalista. Não. É pouco. Fronteiriço. Com certeza. Acima de tudo, universal.
Universal porque conversa e converge com o mundo e as vidas pequenas e a escrita enorme e vigorosa de um registro único, de um autor idem. Narrativa na fronteira, escritura no mundo.
Quiçá a fronteira seja realmente o único lugar possível para estar no limite do impossível do universo que Schlee propõe.
A língua única de Schlee e suas múltiplas vozes.

Ao ler Schlee se me escorrem as certezas e as tipificações acerca da literatura regional, pois ela repete as pátrias pequenas de todos os lugares, e isso a torna muito maior. Schlee bebe num tempo perdido que parece que ficou pra trás, mas que nunca nos abandona – os Oitocentos, tão únicos e tão fundadores de nossa cultura -, mas, ao mesmo tempo, projeta o presente e o futuro numa linguagem que ziguezagueia entre o ocorrido e o devir, como se o tempo passado continuasse sendo narrado ad infinitum até virar o agora – e o que resta é o que somos hoje. E aí somos brindados por “documentos” que atestam a existência “real” dos fatos em questão, como se estivéssemos lendo a correspondência ativa de alguma personalidade do século XIX cuja voz só apareceu hoje. Essa é uma narrativa intemporal, coloca-se, parece, no passado, mas flerta como se fosse hoje o tempo inteiro.
Nessa costura narrativa Schlee não perde o fio da meada e o que parecem ser contos interligados converte-se em um romance polifônico, onde cada voz representa uma protagonista feminina que reveste de significados próprios uma história coletiva com interpretações pessoais de rara beleza e força marcantes. Todas elas têm razão. Todas elas têm a sua razão. Todos os contos são delas e de quem mais for narrando. E o perverso se justifica; não fosse ele não haveriam doze mulheres que contam e que são contadas, não haveria Gardel, não haveria esse livro mágico de Schlee.

Há espaço pra tudo na prosa de Schlee: para homens sedentos de sexo, para mulheres que não abrem mão de seu prazer – por inusitado ou amoral que seja -, para mucamas que vêem mais do que deveriam, para chinas que não se contentam em ser chinas, para filhas que não são apenas filhas, mas cúmplices, amantes, mães.

Doi. Schlee não alivia. Mas um tango, pra ser bem cantado, precisa dessa dor. E se Gardel precisava de uma pré história pra existir ainda mais completamente ela já foi contada. E quem não acreditar que invente um causo melhor. Depois de Schlee há que ser muito bagual pra conseguir.
* Infelizmente agora eu já li. Mas continuarei lendo.